Programas de Matemática: a luta entre a
memorização
e a compreensão
Evolução dos programas desde 1950 até
aos nossos dias.
Aritmética, geometria e álgebra. Estas
eram as matérias ensinadas na década de 1950. Depois disso, a Matemática
evoluiu e mais do que a memorização, os programas caminharam para uma
compreensão do processo matemático. Agora, lamentam muitos, há um regresso ao
passado.
Em 1948 foram aprovados os programas de
Matemática do 3.º ciclo do ensino liceal, os actuais 10.º e 11.º anos do
secundário. A álgebra era “o mais importante”, recorda João Pedro da Ponte,
investigador do Instituto de Educação da Universidade de Lisboa e um dos
autores do programa de Matemática do ensino básico de 2007, entretanto
substituído pelo novo, na passada semana.
Naquele tempo, a aritmética era estudada
nos níveis de ensino mais elementares e, a partir do actual 3.º ciclo fazia-se
a iniciação ao estudo da álgebra e geometria. Chegados ao secundário, os alunos
trabalhavam a aritmética racional, “cujos métodos de estudo eram considerados
os que mais se prestavam a criar no aluno hábitos de rigor científico”, escreve
João Pedro da Ponte num texto sobre o currículo de Matemática no ensino
secundário.
No final da década de 1950, o movimento
da Matemática Moderna ganha força e consegue entrar nos currículos escolares de
muitos países. Em Portugal, pela mão de José Sebastião e Silva, esta corrente é
integrada de forma equilibrada, recorda Leonor Santos da Sociedade Portuguesa
de Investigação em Educação Matemática (SPIEM). O matemático “tinha uma visão
moderada” e a introdução foi feita com “muito cuidado”, corrobora João Pedro da
Ponte. Esta é uma “matemática muito abstracta, carregada de símbolos”, continua
o investigador.
Por essa razão, a Matemática Moderna não
corre bem em muitos países, abrindo guerras entre os que a preconizam e os que
defendem o que se ensinava antes. Os últimos acusam a Matemática Moderna de ter
uma “terminologia pretensiosa” e reclamam o regresso ao ensino das competências
básicas (em inglês back to basics). Ou seja, “o regresso ao cálculo, às
contas e ao fazer de cor”, define João Pedro da Ponte.
Este movimento back to basics
“encontrou forte oposição, logo desde o seu início, da parte da comunidade
educativa”, recorda o investigador. “Há uma diferença de percepções sobre o que
é aprender matemática”, confirma Leonor Santos. Os matemáticos seguem um
caminho e os investigadores ligados à educação outro. Os primeiros defendem o
rigor matemático e os segundos não o descartam mas querem que todos a
compreendam e tenham acesso a ela, explica.
Os programas que se seguem, no currículo
português, visam sobretudo a compreensão. Em 1991, com a reforma Roberto
Carneiro é aprovado um programa com o objectivo de ligar a matemática ao mundo
real. Em 2007 os programas são reformulados com o mesmo fim, o de reforçar o
espírito crítico dos alunos. Paralelamente foi feito um forte investimento na
formação contínua dos professores. Sem ser avaliado, na semana passada, foi
homologado um novo programa para o ensino básico, o que deixou os autores dos
anteriores programas, a Associação de Professores de Matemática e a SPIEM
indignados. Por outro lado, a Sociedade Portuguesa de Matemática, de que Nuno
Crato foi presidente antes de ser ministro, congratulou-se com a mudança,
considerando o novo programa “benéfico”.
Luta política na Matemática?
“Antes de ser ministro, Nuno Crato dizia que primeiro [os alunos] aprendem e
depois compreendem. Essa é uma filosofia contrária à dos programas [de 2007],
em que o objectivo é que vão aprendendo, vão-se aproximando dos conceitos
matemáticos, vão trabalhando para que os compreendam e lhes dêem significado.
Portanto, vão-se trabalhando os conceitos, à medida que os alunos crescem. A
forma como uma criança aprende não é igual à de um adulto”, justifica Leonor Santos.
O novo programa procura que os estudantes “dominem um conjunto de técnicas,
memorizem definições, apostando-se em que primeiro aprendam e depois
compreendam”, continua.
O programa de 2007 pretendia dotar os
estudantes de competências que lhes permitissem, por exemplo abrir um jornal e
ler, com espírito crítico, as estatísticas ou as infografias; ou para quando ia
ao supermercado conseguir fazer uma estimativa, exemplifica a professora. O
novo programa acentua o trabalho matemático. “O que os matemáticos fazem no
dia-a-dia é muito diferente da matemática que é precisa para a maioria da
sociedade”, acrescenta a responsável da SPIEM.
A Associação de Professores de
Matemática diz que o programa aprovado representa “um retrocesso de 40 anos no
ensino da disciplina” que terá efeitos negativos na aprendizagem, aponta à
Lusa. Agora, é o “back to basics: muita memorização”, resume João Pedro
da Ponte.
O Ministério da Educação já veio dizer
que não e que a compreensão também é uma preocupação do novo programa. Mais:
este é muito semelhante ao anterior, defendeu Carlos Grosso, um dos autores, em
declarações à Lusa. Segundo o professor, as mudanças foram sobretudo a
nível de organização: algumas matérias desapareceram (como as estimativas) e
outras foram mudadas de anos de escolaridade (as translações e probabilidades
passaram do 1.º para o 3.º ciclo).
Há uma luta política na Matemática? João
Pedro da Ponte admite que sim. “Há uma luta política pelo controlo do que se
passa no ensino da Matemática e essa torna-se numa luta fratricida. São dois
grupos que procuram aliados políticos.” E encontraram-nos, os do ensino da
Matemática mais ligados à esquerda e os matemáticos à direita, distingue. “As
teses de Crato são caras a certos sectores do CDS”, acrescenta.
O novo programa pode ser elitista, com
uma Matemática só para alguns, “os que vão para as as engenharias e as
ciências” e não para todos, para a escola inclusiva, para esses ficam as noções
de “como fazer uns trocos”, lamenta João Pedro da Ponte. “Há uma diferença
grande: o anterior currículo apostava na compreensão que passa pelo pressuposto
de que todos os alunos vão ser capazes de aprender e vão saber usar a
Matemática no dia-a-dia”, acrescenta Leonor Santos.
A memorização e a compreensão são
incompatíveis? Não, dizem os dois investigadores. “A memorização não tem mal, o
problema é a aprendizagem ser baseada na memorização, esta é essencial, mas é
importante o desenvolvimento do pensamento. [Com o novo programa] o espírito
crítico é altamente desvalorizado e há uma preocupação excessiva com o rigor
matemático”, conclui o investigador.
O PÚBLICO procurou ouvir algum professor
ou investigador associado da Sociedade Portuguesa de Matemática sobre este tema
mas sem sucesso.
Bárbara Wong, in Público, 26 de
Junho de 2013.