Há
pessoas com inteligência ‘dita’ normal, que são incapazes de compreender que
nove é maior que oito. Bem-vindo ao mundo, ainda desconhecido, de uma
dificuldade similar à dislexia, mas que envolve os números.
Inscritos
no quadro da sala do 1º. CEB: “14,2” e “14,5”. A Professora chama Adèle (nome fictício):
“Vem
ao quadro, por favor. Que números se situam entre 14,2 e 14,5?”
Adèle agita-se,
desconfortável, na sua cadeira. Desde o início do ano que a menina revela,
sistematicamente, as suas dificuldades na área. A matemática, para ela, é
chinês. No sentido literal da expressão. Não conseguirá responder corretamente
à questão colocada pela professora. Com o giz na mão trémula e com as faces
coradas de vergonha, ela não conseguirá mais do que provocar a consternação da
professora e a troça dos colegas da turma. Regressará, inevitavelmente, ao seu
lugar, com um peso sobre si, tal como sucedeu no primeiro dia que foi mandada
ao quadro resolver um problema de matemática.
Adèle,
hoje com 21 anos, tem um problema que se traduz em não conseguir perceber que
um número possa ser maior que outro. Que 4x3=12. Ela sabe, pois não é estúpida,
que será capaz de resolver os problemas e de raciocinar, simplesmente, ela não
possui o sentido de número, nem das relações que se estabelecem entre eles. Em frente
ao quadro, naquela sala de aula, há muitos anos, ninguém sabia, nem mesmo ela…
mas Adèle sofre de uma dificuldade de aprendizagem que se designa por
Discalculia. “É uma problemática ainda pouco conhecida, infelizmente, desabafa
a jovem. No entanto, ela atinge 3 a 4% dos alunos, portanto um em cada 20
alunos padecerão de discalculia, ou seja, um aluno em cada turma…”.
Adèle
é uma jovem amarga e revoltada. Não
só porque confessa
ter sido um percurso difícil de percorrer, por causa desta incapacidade, mas
também por ter tido que lidar com o ridículo e desvalorização constantes. Recorda-se de ter trabalhado como uma
desesperada, duplicando esforços em aulas particulares,
de forma a minimizar as suas dificuldades na matemática. Lamenta,
principalmente, que tenha concluído todo o seu percurso académico sem que
nenhum profissional da educação lhe falasse desse handicap.
Escrever 1400
Assim, se os sintomas são
variados, os sinais são evidentes: dificuldades persistentes – pois o tempo que
se passa a repetir os exercícios não valem de nada – para aprender e
compreender os conceito de número e, particularmente, as relações entre eles,
apesar de se possuir uma inteligência ‘dita’ normal. O cálculo mental é uma
tarefa impossível. No primeiro ano, por exemplo, uma criança que sofra de discalculia
pode revelar essa dificuldade, não conhecendo o nome dos números (que 6 é seis).
Mais tarde, ser-lhe-á impossível transcrever corretamente 1400, por exemplo. Escreverá
1000, depois 400. A isto junta-se a vergonha, pelo insucesso persistente, e a
rejeição pela matemática, acompanhada de uma desvalorização pessoal.
«Estes sinais devem
alertar o professor para a problemática, adianta, ainda que no 1º CEB não nos
diagnostiquem o problema, de forma a minimiza-lo. Eu não compreendia nada,
memorizava tudo e depois repetia, de memória. No entanto, no ensino secundário,
começaram os verdadeiros problemas, pois a minha estratégia já não resultava.” Lembra-se,
então, dos esforços suplementares que encetava, das aflições e do ‘frio’
sentido, permanentemente, no estômago! Recorda-se de um professor que, perante
as suas incapacidades decidiu fingir ser um exorcista e, mostrando um
crucifixo, à sua frente, teatralizou, perante gáudio de toda a turma: “ Sai
desse corpo, demónio da matemática…”». Lembra-se de todas as vezes que
regressava a casa, a chorar, pela vergonha passada na sala de aula. Até que, um
dia, a sua mãe leu um artigo que falava da discalculia. Foi uma revelação! Estávamos
em 2008, a escassos meses dos exames finais. Adèle tinha quase 16 anos.
Os seus pais moveram
montanhas para a ajudar. Levaram-na a técnicos especializados que apresentaram
o seu diagnóstico, sem margem para dúvidas: sofre de discalculia. “Finalmente,
eu podia descansar: a culpa não era minha”. Apesar de o reconhecimento da sua problemática
lhe devolver alguma tranquilidade, as dificuldades que sentia continuavam lá,
não desapareceram com o diagnóstico! Lamenta as resistências que encontrou no
sistema escolar, nos professores, nos diretores das escolas. Sem ajuda suplementar,
da qual podem beneficiar os alunos com Discalculia, (calculadora para os exames,
tempo suplementar, enunciados simplificados), Adèle obteve o seu diploma, section prégymnasiale, graças aos excelentes resultados noutras
disciplinas. Mas sempre com média de dois a matemática.
Pedagogia adaptada
Há ainda resistência no
sistema de ensino, percecionado na escola superior que Adèle frequenta, em
busca de concretizar o seu sonho de se tornar enfermeira. “Os professores não
conhecem esta problemática. Nunca pude contar com uma pedagogia adaptada, apesar
dos relatórios técnicos e dos esclarecimentos que os meus pais se esforçaram
por dar aos diversos diretores das escolas que frequentei”.
O nível da matemática começou
a ser demasiado exigente para mim, portanto, deixei de conseguir compensar os
meus maus resultados na matemática, com os das outras disciplinas.” Desiludida
e cansada, desistiu. Começou a aprender cuidados de saúde comunitária. A opção
parece ter resultado, pois afastou-se da matemática e das suas dificuldades e
pôde dedicar mais tempo às aulas com a sua terapeuta, que a ajudou a progredir,
graças a exercícios adaptados e adequados à sua problemática.
Adèle sabe que, à
semelhança de todos os problemas “dys” (dislexia, disortografia e dispraxia)
não podemos falar de cura. Ela continuará a entregar mais dinheiro do que o
necessário para pagar uma conta, a solicitar ajuda para executar as orientações
de uma receita culinária (ou a inventar as proporções!), a recorrer a
estratégias para gerir o seu orçamento ou a optar pelos relógios digitais, ao
invés dos que têm ponteiros (“lembrem-se que eu tinha já 10 ou 11 anos quando
aprendi a ler as horas! Parece uma aberração, eu sei!”). Mas nada é
intransponível! Nem mesmo esperar alcançar o seu sonho profissionalmente, ainda
que o consiga percorrendo um caminho paralelo e, talvez, mais longo.
Hoje, Adèle realiza o seu estágio na École Professionnelle de Fribourg. “No início,
todos os meus medos me puseram alerta! Disse a mim mesma que se não conseguisse
ultrapassar este ano decisivo, isso teria repercussões muito negativas em toda
a minha vida. Assim convencida, trabalhei afincadamente. Porém, neste calvário,
tive finalmente sorte: a minha professora de matemática é fantástica. Ela acompanhou-me
e conhece as minhas dificuldades, ajudando-me a superá-las. Resultado: tenho
ótimos resultados! É a minha vingança!”
Eis o testemunho doloroso
de quem mostra o rosto, mas prefere esconder o seu verdadeiro nome. “Eu não
tenho vergonha de sofrer de Discalculia, mas este artigo permanecerá no tempo e
eu não quero que o meu testemunho me crie uma desvantagem, no futuro, quando
procurar um emprego. Para além disso, quero proteger o nome dos meus
professores, apesar de eles não terem tido pejo de me amesquinhar e de me
embaraçar, nas suas aulas”.
Na hora da integração
As causas da Discalculia
ainda não foram encontradas. A hipótese mais viável parece apontar para uma
causa genética. Os estudos demonstram a existência de uma região do cérebro, propensa
ao cálculo e identificam neurónios sensíveis aos números. “Saber qual a causa
da problemática é importante, mas detetar os alunos com Discalculia
precocemente, é ainda mais importante”, confidencia a mãe de Adèle, revoltada com
o desconhecimento desta problemática, por parte dos profissionais de educação.
“Cursos de formação
contínua não são suficientes” e a sua filha continua: “Deveria ser obrigatória
a frequência de formação em todas as problemáticas “dys”, pois sabemos que
estas dificuldades de aprendizagem constituem um obstáculo ao sucesso educativo”.
Importa ressalvar que a discalculia é menos divulgada e estudada que a
dislexia, portanto, menos conhecidos os seus sinais e sintomas. Talvez porque
as crianças que dela padecem aprendem a camuflar as suas dificuldades,
recorrendo à memorização-reprodução, ou a outras estratégias, antes de assumir
que “são um zero a matemática”. Por outro lado, os problemas de linguagem são
mais evidentes e revelam-se mais precocemente do que as dificuldades de
cálculo.
“É determinante que os
pais e os professores saibam que esta problemática existe e que, sem qualquer
margem para dúvida, o aluno deve e pode ser avaliado, apesar das suas
dificuldades”, alerta a mãe de Adèle. Uma vez diagnosticado, o aluno poderá
beneficiar de apoio para melhorar a sua compreensão numérica e usufruir de
ajustes na sala de aula: “Ainda que seja difícil obter esse ensino
diferenciado, pois não existem diretivas oficiais que as salvaguardem”, alerta
Adèle. É lamentável, confessa Adèle, ainda mais “ numa altura em que se fala em
integrar crianças com handicaps no
ensino regular. O que me parece ser uma medida meritória, porém, pode
começar-se a integrar efetivamente, e de
forma eficaz, aqueles que já se encontram nessas salas de aula…”.
PRISKA RAUBER, Le Joural du Sud Fribourgeois. La Gruyère, “Dans le flou mathématique”, 7/5/2013.
O texto, aqui traduzido,
pode ser consultado, no original: http://www.lagruyere.ch/2013/05/dans-le-flou-math%C3%A9matique.html
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