Em 16
de Abril de 1995, Iqbal Masih, tinha apenas doze anos, quando foi assassinado.
Decidira denunciar a exploração de que eram vítimas as crianças, que como ele,
trabalhavam sem descanso nas fábricas de tapetes do Paquistão.
Iqbal
tinha sido vendido pelo pai aos quatro anos, que por ele recebeu 12 dólares.
Foi morto pela Máfia da indústria das tapeçarias, que não perdoou a sua
ousadia. Só recentemente soube que esse dia passara a ser assinalado como o Dia
Mundial contra a Escravatura Infantil.
Não
consigo deixar de pensar nos milhões de crianças, como o Iqbal, que crescem sem
nunca terem brincado e sem nunca terem aprendido a ler.
E se
pudéssemos resgatar algumas crianças, pelo menos as mais pequeninas? E se
conseguíssemos fazer com que, pelo menos algumas destas crianças fossem
adotadas?
No ano
passado, falei da adoção a propósito da palestra que Souhayr Belhassen,
ativista dos Direitos Humanos e vencedora do Prémio Norte-Sul, deu na
Universidade Católica, onde manifestou enorme preocupação pelo facto de temer
que o novo Governo islamita da sua Tunísia revogasse a Lei da adoção, o que, em
seu entender, representaria um retrocesso para os direitos de algumas crianças.
Lembrei-me
muitas vezes de retomar este assunto tão apaixonante, quanto difícil. Mas
agora, como decorreu recentemente em Lisboa um Congresso sobre a Adoção,
decidi-me, até porque vejo sempre um interesse redobrado sobre ele, visível nas
múltiplas abordagens da comunicação social, quando foi publicado o 10º
Relatório sobre o Acolhimento de Crianças, em que os dados sobre a adoção
suscitaram maior curiosidade.
Sobretudo,
achei que tinha de escrever ainda durante este mês, porque foi Abril que veio
permitir um novo olhar sobre o direito de todas crianças a serem tratadas sem
qualquer distinção. No nosso País, antes do 25 de Abril, havia uma, enorme,
entre filhos legítimos e ilegítimos, o que deixou de ser possível com a
Constituição de 1976, que proibiu a discriminação em razão do nascimento.
Leonor
Beleza, que integrava a Comissão de Revisão que em 1977 procedeu às grandes
alterações no Direito da Família, conta que foi justamente com base nessa norma
anti-discriminação que se decidiu alargar o âmbito da adoção, por forma a
permitir a todas crianças, sem excepção, terem uma família.
É que,
mesmo depois de, em 1966 ter sido reintroduzida a adoção no nosso sistema
jurídico, que durante cem anos a excluiu, só podiam ser adotados filhos de pais
incógnitos ou falecidos.
Como
não era reconhecida legitimidade ao consentimento, ficavam de fora, desde logo,
os meninos rejeitados. E ficavam de fora também os abandonados, os seviciados,
os abusados, desde que os pais fossem vivos ou conhecidos.
Ouvi há
dias o Presidente da Cooperativa “Pelo Sonho é que Vamos”, Manuel Matias, sobre
a demora de um processo relativo a uma criança cuja mãe, desde o seu
nascimento, declarara não querer assumi-la: decorridos dois longos anos, a
criança permanecia na Instituição porque o Juiz não queria admitir que uma
mulher com formação universitária quisesse entregar um filho para a adoção e
teimava em convencê-la a exercer responsabilidades que não desejava. Achei que
faria sentido salientar aqui que foi precisamente por causa desta ideia, de que
o consentimento era anti-natural, como dizia o Visconde de Seabra, que antes de
1977, ele não era admissível.
E
creio, sinceramente, que estas decisões poderão ser afinal motivadas por
concepções desta natureza, e que permanecem, porque se fundamentam em ideias
muito fortes sobre os sentimentos maternais, que muitos pensam ser inatos,
quando a vida demonstra que nem sempre é assim. Bastará lembrarmo-nos da obra
de Elisabeth Badinter “O Amor Incerto”, quando ela própria refere, a propósito
das reacções que o livro suscitou, que ”a maternidade é ainda hoje um tema
sagrado”.
A
história da infância está cheia de relatos de maus tratos, de abusos de toda a
ordem, de infanticídios, praticados pelos pais. Mas apesar de todas as
atrocidades que sabemos, muitas pessoas insistem em romantizar as relações
familiares e recusam-se a admitir a realidade incómoda, que nos interpela todos
os dias.
Edgar
Morin dizia que “as convicções são mais fortes do que os factos que as
desmentem” e desgraçadamente, tenho constatado que frequentemente as crianças
continuam a ser vítimas de mitos, confundindo-se o que são os desejos, mesmo
que bem intencionados dos decisores, com as reais necessidades dos
destinatários de tais decisões.
O que é
certo é que durante muito tempo, todas as normas convergiram para limitar a
adoção e a interpretação das novas normas dificultou, muitas vezes, a filiação
adotiva.
Estou
convencida também que a indiferença permitiu, mais vezes do que seria
desejável, essa interpretação restritiva.
Chegados
a este ponto, creio que deveremos fixar algumas ideias-chave: Em primeiro lugar,
os Tribunais, nesta matéria, devem ser rigorosos na apreciação da prova e
jamais a pobreza deverá poder ser fundamento para retirar crianças à sua
família biológica. Se uma família vive em extrema pobreza, deverá ser apoiada,
pela comunidade, pelas IPSS, pelos competentes serviços do Estado, seja pelas
Autarquias ou pela Segurança Social.
A
questão determinante a apurar deverá ser a existência de relação afetiva.
Deverá portanto, com segurança, concluir-se que ou não chegou a estabelecer-se
a relação, como sucede, por exemplo, nos casos de rejeição ou de consentimento
prestado imediatamente após o nascimento, ou que houve uma ruptura dos laços
afectivos próprios da filiação, como geralmente sucede nos casos de abandono,
de maus tratos graves ou até de abusos sexuais.
Por
fim, é importante que compreendamos que felizmente no nosso País há cada vez
menos bébés abandonados, o que resulta do grande investimento que tem sido
feito na área social nas últimas décadas.
E será
legítima a insistência, levada por vezes ao exagero de pretender impôr aos
candidatos à adoção crianças mais velhas, algumas já adolescentes, quando
sempre desejaram uma criança de baixa idade? Não corresponderá esse desejo
afinal ao sonho natural de ter um filho ao colo para acalentar? E não haverá
dificuldades acrescidas e até riscos no estabelecimento de uma relação afetiva
de qualidade nestas situações?
Tenho
para mim que ninguém tem o direito de impor nada nesta matéria tão delicada e
que a culpabilização dos candidatos só criará maiores dificuldades em situações
já de si muito vulneráveis.
Por
isso, à semelhança do que se verifica nos outros Países da Europa, a tendência
será decerto para a adopção de nacionais ser residual. Preconizo, assim, uma
maior abertura à adopção internacional.
Porque
todos os meninos do mundo merecem ter uma família que os ame.
Drª Dulce Rocha, Vice-Presidente do Instituto de Apoio à Criança, na revista Visão de 18 de Abril de 2013.
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