segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Falta sentido de futuro ao sistema de ensino português
 
 
 
 
O ministro da Educação do Governo de Durão Barroso é o novo presidente do Conselho Nacional de Educação, um órgão consultivo da Assembleia da República. Promete um mandato de mudança com uma palavra-chave: rigor
David Justino, de 60 anos, professor universitário de Sociologia, consultor de Cavaco Silva, ex-ministro, ex-deputado e ex-autarca do PSD, tem uma agenda ambiciosa para as suas novas funções à frente do Conselho Nacional de Educação (CNE) e quer sobretudo que se faça ali o que também exige nas aulas: opiniões são bem-vindas, desde que sejam fundamentadas e apoiadas em estudos. Ter uma lei de bases do sistema educativo virada para o futuro é um dos seus objectivos. Defende que as escolas têm de deixar de ignorar as necessidades do mercado de trabalho e que devem poder escolher os seus professores. Que não sejam os melhores que lá estejam é algo sobre o qual também quer ouvir o CNE. Também não entende qual a razão que levou Nuno Crato a fixar em 50% a fatia de alunos que quer ter no ensino profissional. E não tem dúvidas de que os alunos estão hoje melhor preparados do que antes.

Quando tomou posse esta semana como presidente do CNE, defendeu ser necessário rever a lei de bases do sistema educativo, aprovada em 1986. O ministro Nuno Crato já fez saber que esta não é uma das suas prioridades, que prefere pequenas mudanças, embora tenha já feito muitas alterações de políticas educativas nestes dois anos. O que, para si, é essencial mudar na lei de bases?

Eu não disse que ia rever a lei de bases, o que disse é que a queria avaliar. A decisão ou a iniciativa de a rever pertence à Assembleia da República ou ao ministério, se quiser fazer uma proposta. O que eu entendo é que o CNE deve confrontar a lei existente com aquilo que é o desenvolvimento do sistema educativo e essa avaliação deve ser feita sem pressas, deve produzir conhecimento para que o Conselho possa eventualmente fazer recomendações ao ministério sobre o que necessita de ser mudado por existir um problema de desadequação.

Quer dar um exemplo de problemas de desadequação entre o que está estabelecido na lei e a realidade do sistema educativo hoje?

É um problema que existe desde o modo como está estruturada a carreira docente até à actual configuração da gestão e organização escolar. A organização escolar adquiriu uma dinâmica que não diria que perverteu a lei, mas pelo menos que torneou aquilo que é o espírito e o referencial normativo que a lei representa.

Torneou em que aspectos?

Por exemplo, no caso dos directores [uma figura que não está prevista na lei de 1986]. Na avaliação a fazer, devemos pensar no papel do pilar fundamental do sistema de ensino que é a escola pública. Concebo, no futuro, que o sistema de ensino deve ser diferenciado, tendo diferentes formas de organização e de soluções de acordo não só com as características das escolas como das comunidades onde estão inseridas. Temos de saber até que ponto este processo está ou não a ser limitado pelo quadro institucional existente. O ministro entende que tem margem para poder fazer as pequenas mudanças que julga necessárias com esta lei. É uma decisão política. Ao CNE, porque tem funções de sistema de avaliação do sistema educativo, compete avaliar da adequação da lei de bases ao sistema de ensino, que, desde os finais dos anos 90, mudou muito.

A rede escolar mudou, os problemas de abandono alteraram-se, a escolaridade obrigatória aumentou. Ou seja, o sistema mudou mais rapidamente do que a lei. Sou defensor da estabilidade institucional, mas não devemos esquecer que esta é uma lei de 1986, que foi preparada nos quatro a cinco anos anteriores, numa altura em que os sistemas educativos estavam em expansão, quando o mundo não sabia ainda o que era a globalização e quando os contextos sociais eram completamente diferentes.

Esta lei de bases é conhecida sobretudo por ter preconizado o alargamento da escolaridade obrigatória até aos 15 anos. Em 2009, foi alargada para os 18 anos, mas não se alteraram as condições de certificação escolar. Para acabar o secundário, e portanto o que é agora a escolaridade obrigatória, um aluno tem de ter aproveitamento a todas as disciplinas, o que nunca aconteceu no 9.º ano.

O problema de certificação tem de ser ponderado. Uma coisa é dizermos que há dupla certificação, escolar e profissional, outra é esclarecermos quais as condições para a obter, o que nem sempre acontece. Não posso entender o sistema de ensino, como o faz a lei de 1986, como sendo uma espécie de trajecto que todos podem fazer de igual modo. A lei foi construída em torno da escolaridade obrigatória de nove anos e agora ela passou para 12 e então temos que alterar esse artigo da lei, mas também eventualmente a própria concepção da lei.

Para a adequar ao que existe hoje ou também apontando para o futuro?

As leis de bases são, acima de tudo, documentos orientadores do desenvolvimento do sistema de ensino e todos sabemos que a lei de 1986 é um diploma que pensava noutra sociedade, noutro sistema de ensino e o que temos, portanto, de fazer é de reinventar os objectivos, as metas, o que queremos fazer.

Um dos problemas fundamentais do sistema de ensino em Portugal é que lhe falta sentido de futuro. Sei até pela minha experiência como ministro da Educação que há sempre um trabalho, que é insano, de remediar o sistema, de tentar gerir, adequar e optimizar os mesmos recursos. Precisamos de saber para onde estamos a caminhar. Temos de saber que tipo de conhecimento escolar deve promover.

Essa análise que irá propor ao CNE não se aproxima de uma espécie de pacto pela educação?

Fala-se há muito tempo desse pacto. Sempre disse que a melhor forma de estabelecer pactos é a de trabalhar sobre os quadros institucionais e normativos existentes. Avaliar a lei de bases pode ser uma boa oportunidade de estabelecer pontes e construir laços de confiança, mas tal não pode ser feito através de uma visão instrumental do concordo ou não concordo.

Tem de haver um trabalho preparatório, feito com tempo, com rigor, que permita a quem tem de tomar opções que o faça de forma sustentada. Por exemplo, sobre o tipo de conhecimento, de currículo que devemos promover continua por fazer a adequação ao facto de estarmos a caminhar para uma sociedade de conhecimento em que o tipo de competências e perfis de formação será completamente diferente da sociedade industrial que tivemos até há pouco tempo.

Mas todos os ministros da Educação têm feito alterações aos currículos. O actual não escapou à regra.

Numa perspectiva apenas de ajustamento da organização curricular às necessidades imediatas da sociedade e da economia. Quando falo de uma estratégia, aponto para linhas de desenvolvimento capazes de perdurar por vários ministros. Por uma década ou mais. Precisamos de saber para onde vamos e onde queremos chegar.

Falou há pouco da necessidade de se caminhar para um sistema educativo mais diferenciado, o que, de todo, não está contemplado na actual lei de bases, que favorece a homogeneização. Quando fala de diferenciação, está-se a referir à liberdade e escolha das escolas como é praticada nos EUA ou na Suécia? Às chamadas turmas de nível [separação de alunos por nível e conhecimento]?

Este processo passa por uma diferenciação curricular, o que pressupõe a existência de um currículo nacional, que possa permitir às escolas afirmar uma identidade própria. Também entre escolas públicas e privadas, que fazem serviço público, deve existir possibilidade de diferenciar trajectos em função do que são os projectos de escola, mas tal só é possível com um sistema de avaliação que permita aquilatar até que ponto essa diferenciação é vantajosa ou não.

Ganharíamos, no futuro, em ter uma diferenciação regulada. Não pode ser uma decorrente do voluntarismo ou da desregulação porque não creio que tal seja positivo. O que pretendo propor aos conselheiros do CNE é que façam precisamente uma reflexão em torno do tipo de sistema de ensino, que tipo de escola, querem daqui a 20 anos e que essa análise seja feita com base em reflexão, em produção e conhecimento para que possamos municiar os decisores políticos com informação e opções sustentadas, que poderão ser, no fundo, bases de confiança e eventualmente de compromisso.

O anterior CNE elaborou vários pareceres críticos em relação a várias apostas do actual ministro, nomeadamente em relação ao fim das áreas não curriculares ou aos chamados mega-agrupamentos. Quer pronunciar-se?

Estão feitos, fazem parte do património do CNE e, como tal, têm de ser respeitados.

O anterior CNE considerou, por exemplo, que os chamados mega-agrupamentos punham em causa a autonomia das escolas.

Tenho uma opinião completamente diferente. Mas é a minha opinião. A do Conselho é essa até novo contributo ou nova avaliação. Compreendo que os senhores conselheiros queiram ter opinião própria sobre as coisas, mas a única exigência que faço, e é a proposta que apresentarei em Setembro, quando tivermos a primeira reunião, é que não basta ter opinião, é necessário fundamentá-la e justificá-la. Eu, como professor, não aceito que um aluno meu diga que as coisas são assim porque acha que sim. Digo sempre nestes casos: aqui ninguém acha, em ciência não se acha, ou se demonstra ou não se demonstra.

A avaliação das escolas voltará então a ser objecto de análise por parte do CNE?

Todos dizemos que defendemos a autonomia, mas o que não se diz é como essa autonomia se pode concretizar. Há muita gente que no plano do discurso a defende, mas que na prática não a quer. A autonomia tem a ver com sistemas de descentralização e é isso que é importante. O ministério não vai ter, aliás já não tem, capacidade de gerir tudo até ao mais ínfimo pilar. Tem que existir partilha de responsabilidades, mas com efeitos.

A autonomia tem de ser acompanhada de uma alteração dos mecanismos de colocação dos professores. A própria lei de bases tem um artigo em que se defende a fixação dos professores às escolas. Mas esse mecanismo nem sempre é respeitado em função do mérito, mas sim dos vínculos ou da antiguidade. E esse é o problema. As escolas públicas, para se valorizarem, têm de poder escolher os seus professores e o ministério tem de ter a capacidade de seleccionar os melhores.

Através da prova de acesso à profissão que o ministro Nuno Crato quer agora implementar?

Não falo sobre os instrumentos. O que defendo é que têm de existir critérios de mérito. O Estado tem o dever e a obrigação de escolher os melhores, mas a forma como o faz diz respeito ao Governo e não ao CNE. Há muitos instrumentos para tal, muitas experiências internacionais.

A formação inicial de professores está entregue quer às escolas superiores de educação, quer às universidades e o ministério não tem qualquer capacidade de regulação sobre os conteúdos e a forma como esses candidatos a professores são formados inicialmente

E devia ter?

Não. Defendo que essas escolas devem ter autonomia na forma como ensinam e que o ministério deve ter autonomia na forma como selecciona. Tudo isto prende-se com a chamada condição docente. O que faz de um candidato a professor um professor? E é todo este trajecto, desde a formação inicial à profissionalização, que vou propor para debate no CNE. Se temos um sistema de recrutamento que não garante que tenhamos os melhores professores, então o CNE deve pronunciar-se. Mas para o fazer é necessário um estudo sobre a evolução das formas de recrutamento, da relação entre a carreira e a formação inicial, de qual o papel da formação contínua. Tudo isso tem de ser analisado de modo a que também se produza conhecimento.

O ministério cortou drasticamente na colocação de professores contratados, o que levou no último ano a um envelhecimento notório do corpo docente das escolas. Tendo em conta as características actuais dos alunos, esta situação poderá criar ainda mais problemas nas escolas?

Penso que o problema mais sério tem a ver com o de alguma injustiça intergeracional. Sabemos que o sistema está a emagrecer e que o número de lugares disponíveis para novos professores tende a diminuir, mas não creio que este fenómeno se vá manter por muito mais tempo. Pela simples razão de que o envelhecimento da classe docente levará a que mais tarde ou mais cedo muitos terão de passar à reforma e serão criadas oportunidades para outros. E é nessa altura que devemos ter definida qual a estratégia para que a escola pública possa escolher os melhores professores.

Existem professores a mais?

Depende daquilo que queremos. Que tipo de ensino, de currículo. Se calhar, para o tipo de ensino actual, temos professores a mais, para outros modelos talvez não. O que não pode acontecer é ajustar-se a oferta curricular para ocupar docentes. Em muitos casos, temos observado, mesmo nas chamadas vias profissionalizantes, que muitas delas estão a produzir para o desempenho. Esta adequação entre aquilo que a escola forma e aquilo que o mercado de trabalho precisa é outro tema que deve ser reflectido. Temos de ser muito rigorosos nesta adequação. Porque uma coisa é darmos cursos em função dos recursos docentes que temos e outra é dá-los em função das necessidades do mercado de trabalho, e deve ser esta última opção a vingar. Tanto no ensino secundário, como superior. Mas não creio que tenhamos de sacrificar a componente de formação geral - as escolas têm de continuar a formar cidadãos e pessoas que saibam pensar. Já no que diz respeito às componentes de formação específica, tem de se criar alguma flexibilidade na construção das ofertas, de modo a que se possam adaptar mais facilmente às necessidades do mercado de trabalho.

A oferta de cursos profissionais nas escolas secundárias públicas começou no seu mandato. Agora o ministro Nuno Crato quer ter 50% dos alunos do secundário nestes cursos. Concorda?

Sempre advoguei que esta oferta devia ser planeada, de crescimento relativamente sustentado e não explosivo, como sucedeu já depois de ter abandonado o Governo. O objectivo proposto pelo actual ministro é idêntico ao que já fora apontado por Maria de Lurdes Rodrigues. A questão que se me levanta é: porquê 50%? Ainda ninguém me explicou. Dizem que na Alemanha também é assim, mas a estrutura industrial e produtiva alemã é completamente diferente da nossa. Penso que há aqui algum voluntarismo e que, face à conjuntura económica actual e à necessidade de aumentarmos a nossa taxa de escolarização superior, porque vamos precisar de mais licenciados em algumas áreas, deve ser ponderado.

Como professor universitário, tem a percepção de que os alunos que chegam do secundário estão hoje pior preparados do que estavam há alguns anos?

Não, pelo contrário. Estão melhor. São mais cultos, estão mais abertos para as tecnologias da informação e não creio que escrevam pior ou que dêem mais erros, como muita gente diz.

Há outro tema ainda que vou propor para avaliação do CNE e que tem a ver com o modo como tem evoluído a rede escolar em todos os níveis de ensino, para não andarmos a falar de coisas que não sabemos.

Não é por acaso que os resultados escolares melhoraram, nomeadamente nos testes internacionais. Temos pais mais escolarizados, temos escolas e condições de aprendizagem melhores do que há 10 anos, temos professores melhor formados. E os miúdos são melhores também.

E, no entanto, os resultados dos exames nacionais voltaram a piorar.

É uma das questões que o CNE também deverá analisar. Já temos mais de 15 anos de exames nacionais e por isso dispomos de um manancial de informação que precisa de ser analisado. É desejável que o sistema de exames tenha estabilidade. Os exames são um instrumento entre vários instrumentos de avaliação, mas é aquele que é socialmente mais reconhecido. Nesse sentido, tem que haver um esforço para a sua credibilização, que passa por criar um sistema em que os resultados sejam comparáveis de ano para ano. Tudo depende muito de como são feitos os exames e as correcções. O papel das correcções é muito importante.

Por que decidiu continuar como consultor do Presidente da República?

Por uma questão de lealdade e porque não colide com estas minhas novas funções, uma vez que, em Belém, nunca me ocupei das questões da educação. Sou consultor para os Assuntos Sociais.
 
Por Clara Viana, in Público, 05/08/2013.

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