segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Os neurónios da leitura


        Apesar da informação relativa ao funcionamento do cérebro durante o ato da leitura, apresentada no jornal Público, ter sido divulgada recentemente, estas descobertas foram já analisadas através de um Projeto Europeu “Signes et Sens”.

        Este projeto teve como tema principal a leitura compreensiva e foi realizado pela Escola Secundária de Afonso de Albuquerque da Guarda, em colaboração com vários parceiros europeus (Bélgica, Roménia, Polónia, França e Turquia).

        O objetivo principal deste projeto consistia na construção de um módulo de formação inicial e contínua, para ajudar os professores a melhorarem o seu conhecimento do ato léxico, de forma a identificarem os verdadeiros obstáculos na compreensão da leitura e, desenvolverem práticas pedagógicas adaptadas para ultrapassar estes obstáculos.


       Para uma informação mais detalhada sobre o projeto, consulte: http://signesetsens.eu/pt/connaissance_acte_lexique.html




       Vejamos alguns excertos do trabalho desenvolvido no projeto, baseado no livro de Stanislas, DEHAENE, Les neurones de la lecture (Paris, Odile Jacob, 2007).


A Ciência da Leitura

      “Atrás de cada leitor esconde-se uma mecânica neuronal admirável, tanto na precisão como na eficácia, da qual começamos a compreender a organização. Nos últimos anos nasceu uma autêntica ciência da leitura” (p.21).
 
       Neste livro apaixonante e de uma considerável clareza, o autor tenta partilhar esta ciência da leitura, assim como os avanços experimentais que a sustentam. A sua esperança é ver aparecer uma verdadeira neurociência da educação, que permitirá optimizar as estratégias de ensino, pondo definitivamente de lado, por exemplo, certos métodos de leitura como o método global, do qual demonstra a sua ineficácia por ser inadaptado à organização cerebral da criança.
 
Dois modelos opõem-se para « explicar » o cérebro :
  1.      Modelo da plasticidade generalizada e do relativismo cultural (modelo antigo)
  2.      Modelo da reciclagem neuronal (modelo mais recente e defendido pelo autor)



      O antigo modelo - Modelo da plasticidade generalizada e do relativismo cultural - desenvolve as seguintes ideias:

O cérebro é um órgão totalmente flexível e maleável, portanto, não constrange em nada a extensão das actividades humanas (p.26).

O cérebro humano é, de alguma maneira, uma tábua rasa na qual são impressos os dados do meio ambiente natural e cultural.

       Não há, portanto, natureza humana biológica, mas uma construção progressiva desta, por imersão numa dada cultura.

Só a capacidade de aprender seria a característica da nossa natureza humana(p.26-27).

       Este modelo foi recusado devido aos dados recentes da ressonância magnéticacerebral e da neuropsicologia.Veremos até que ponto é falsa a imagem de um cérebro virgem, infinitamente maleável, e que se contentaria em absorver os dados do seu meio ambiente cultural (p.27).

 
       O autor desenvolve um outro modelo, o da reciclagem neuronal. O nosso cérebro, segundo ele, é evidentemente capaz de aprender e faz prova de plasticidade e de uma capacidade de adaptação ao meio ambiente, mas a sua arquitetura está estreitamente enquadrada por fortes constrangimentos genéticos (p.27). Esta aprendizagem é por isso limitada. Por exemplo, em todos os indivíduos, em todas as culturas do mundo, a mesma região cerebral, com diferença de alguns milímetros, intervém para descodificar as palavras escritas. Quer se leia em francês ou em chinês, a aprendizagem da leitura passa sempre por um circuito idêntico (p. 27).

       Este modelo assenta na grande ideia que os circuitos corticais, herdados do nosso passado evolutivo, se reconvertem ou melhor ou pior à leitura: a aprendizagem da leitura impõe profundas modificações nos circuitos do cérebro (p. 22-23). É um órgão fortemente estruturado que faz do velho, novo. Para aprender novas competências, reciclamos os nossos antigos circuitos cerebrais de primatas- na medida em que estes toleram um mínimo de mudança (p.28).

        O paradoxo da leitura sublinha o facto indubitável de que os genes não evoluiram para nos permitir aprender a ler. Só se verifica uma única solução. Se o cérebro não teve tempo de evoluir sob os constrangimentos da escrita, então foi a escrita que evoluiu, para poder tomar em conta os constrangimentos do nosso cérebro (p.29). E um pouco mais adiante, o autor vê o vestígio de um incessante «bricolage» evolutivo que adapta, sem descanso, os objectos da escrita aos constrangimentos do nosso cérebro.



Como lemos?

 

Vamos descobrir, de forma breve, o processo de leitura no seu aspeto neuropsicológico.

Tudo começa na retina, onde vêm projetar-se os fotões, reenviados pela página (p.36). A retina é a membrana que cobre todo o fundo do globo ocular( é composta por várias camadas de células sobrepostas e que têm funções diferentes). Esta recebe as imagens captadas pelo olho, transforma-as em sinais ou impulsos elétricos e transmite-os ao cérebro, por meio do nervo ótico.

       Ela não é homogénea, no sentido em que só a zona central da retina, chamada fóvea, é rica em células fotorecetivas de muito alta resolução,:os cones. Esta zona, que ocupa aproximadamente 15 graus do campo visual, é a única zona da retina realmente útil à leitura. Só ela capta as letrascom os detalhes suficientes para as poder reconhecer (p.36).

 
       A estreiteza das fóveas obriga-nos a mexer constantemente os olhos ao longo da leitura. Não percorremos o texto de forma contínua, os nossos olhos deslocam-se por etapas. Isto é, devido ao facto de, no seio da fóvea, a informação visual não estar representada em todo o lado com a mesma precisão. (…) A precisão é máxima ao centro e diminui na periferia (p.37).

        Conseguimos identificar 10 ou 12 letras por etapas : 3 ou 4 à esquerda do centro do olhar e 7 ou 8 à direita.É o que se chama, habitualmente, de campo da perceção visual das letras. Esta assimetria provém da direção da leitura. No leitor de árabe ou de hebreu, quando o olhar percorre a linha da direita para a esquerda, a assimetria do campo visual inverte-se (p.41).

       O nosso olho impõe, portanto, à leitura enormes constrangimentos e … inamovíveis. Podemos demonstrar que são as sacadas oculares que limitam a velocidade de leitura (p.42).

        Ao entrar na retina, a palavra desfaz-se em mil fragmentos: cada porção de imagem da página é reconhecida por um fotorecetor distinto. Toda a dificuldade consiste depois em juntar esses fragmentos a fim de descodificar as letras;trata-se da ordem pela qual são apresentadas, napalavra em questão(p.35).




Onde se passatudo isto ?






        Num determinado lugar do cérebro, no sistema de reconhecimento visual das palavras: em todos os indivíduos, em todas as culturas do mundo, a mesma região cerebral, com diferença de alguns milímetros, intervém para descodificar as palavras escritas. Seja em francês ou em chinês, a aprendizagem da leitura passa sempre por um circuito idêntico (p. 27).
O nosso sistema de reconhecimento visual das palavras identifica o que não varia, apesar das formas muito variadas que podem ter as palavras (tamanho, tipo de letra, maiúsculas/minúsculas, negrito ou não, sublinhadas ou não, …): é o que chamamos dereconhecimento invariável das palavras.
Aprende-se, assim, a descurar todas as variações não pertinentes para a leitura e, em contrapartida, a identificar e a ampliar as diferenças pertinentes, mesmo as mais pequenas.

Exemplo: A diferença entre "dois" e "dais", entre "frou" e "tour".

Como tudo acontece?


        O nosso sistema visual decompõe automaticamente as palavras em constituintes elementares. A natureza desses constituintes continua um tema de pesquisa muito atual (p.51). Assim decompostos, estes elementos vão poder ser utilizados pelo cérebro para dar o som e o sentido.

       Existem duas vias para a leitura :
       - a via fonológica ou via dos sons (= oralização ou leitura silenciosa : não se trata nem de articular, nem de mexer os lábios, mas de transformar as letras emsons, de aceder àpronúncia das palavras). Também chamada conversão grafema-fonema.
       - a via lexical, ou via directa, que dá acesso direto ao sentido.
       As opiniões são muito controversas entre os investigadores:
      - para uns há uma passagem obrigatória pela via fonológica antes de se aceder ao sentido;
       - para outros, a passagem pela via fonológica é uma caracteristica do leitor principiante e não do leitor hábil.

       Posição do autor:Atualmente, existe um consenso : no adulto, as duas vias da leitura existem e são ativadas simultaneamente.(…)funcionamem paralelo, uma sustentando a outra (p.53).

      A via fonológica é a única possível para ler as palavras novas ou raras na ortografia regular,os neologismos, as pseudopalavras …
O processo é o seguinte: Descodificação das letras - procura de uma possível pronúncia - procura do sentido.
      Via lexical é utilizada para as palavras frequentes e indispensável, inicialmente, para as palavras irregulares (numerosas em francês e mais ainda em inglês).
O processo é o seguinte: Descodificação das letras - procura de sentido - tentativa de uma pronúncia.
Existe aqui uma diferença clara, por exemplo, da língua italiana, onde não há praticamente palavras irregulares – cada letra corresponde a um som e, portanto, os resultados de leitura das crianças são nitidamente melhores que nos francófonos, não se verificandoquase nenhum disléxico!).
Nenhuma destas duas vias, por si só,é suficiente para ler todas as palavras (p.70).
Quando lemos em voz alta, as duasvias conspiram e colaboram uma com a outra (p.70).
A maioria dos modelos psicológicos contemporâneos concorda que a leitura hábil e fluente resulta de uma estreita coordenação das duas vias de leitura (p. 71). Portanto, seria mesmo mais sensato falar de vias múltiplas de leitura.

        Nota a propósito da via lexical :
       Assenta no armazenamento de dezenas de milhares de palavras num « léxico mental » ou talvez em vários léxicos: ortografia, fonologia, gramática e semântica. Todos estes léxicos agem em paralelo e de forma alguma por séries à grande eficácia e rapidez! (ver página 74 e seguintes a metáfora).
       Sem a acção do nosso léxico mental, a palavra escrita tornar-se-ia numa «letra morta». A identificação das letras e das palavras é um processo ativo de descodificação, no qual o cérebro acrescenta a informação ao sinal visual (p.80).
O reconhecimento de uma palavra exige que múltiplos sistemas cerebrais se conciliem numa interpretação unívoca da entrada visual. O tempo que demoramos a ler uma palavra depende portanto mais das suas propriedades intrínsecas que dos conflitos ou das coligações que induzem no seio da nossa arquitetura cerebral (p. 82).
       O nosso léxico é uma arena onde a competição é difícil e onde a vantagem pertence aos «habituados », ou seja, às palavras mais frequentes (p. 82).


Em resumo, no cérebro:
Cada lobo é especializado numa ou várias funções sensoriais.
As informações (palavras, rostos, objetos, …) percebidas, pelos olhos, ativam as áreas visuais do lobo occipital de cada hemisfério.
Estas regiões efetuam uma primeira análise da imagem, provavelmente para dela extrair as formas elementares (traços, curvas, superfícies,…). Neste estádio do tratamento da informação, o cérebro ainda não sabe a que obedece (p. 115). Depois (50 milésimos de segundos mais tarde), a informação começa a ser selecionada e as palavras suscitam uma ativação da área do reconhecimento visual das palavras de que acabámos de falar (no hemisfério esquerdo sobretudo, na região occipito-temporal central). Tudo isto acontece automaticamente, em menos de um quinto de segundo!
         E depois do reconhecimento visual, por onde caminha a leitura? Como acedemos ao sentido e à sonoridade das palavras?
        A região occipito-temporal, de que já falámos anteriormente, distribui então a informação a numerosas regiões corticaisem dois circuitos principais : um converte-os em sons, o outro dá-lhe sentido. Estas regiões já não são específicas para a leitura.
E estas duas vias da leitura (que dão acesso ao sentido e à sonoridade das palavras) ativam áreas cerebrais distintas.

Conversão das letras em sons
 
         O lobo temporal esquerdo está amplamente implicado, nomeadamente numa região superior deste lobo temporal chamada planum temporal, porque permite o encontro das informações visuais e auditivas, o planum temporal tem verdadeiramente um papel de encruzilhada essencial à aprendizagem da leitura (p. 152).

         Via de acesso ao sentido: Várias regiões são ativadas, no entanto, nenhuma é específica para as palavras escritas. A complexidade destes mecanismos é impossível de resumir em poucas linhas!
Encontramo-nos ainda, e só, no balbuciamento da neurologia do sentido. (…) no domínio do sentido,a humildade é de bom tom porque ninguém, presentemente, pode pretender ter um modelo neurológico preciso/exato deste misterioso raio de compreensão que faz com que a atividade de uma rede de neurónios, num determinado instante, «faça sentido» (p.155).
Sabemos ao menos uma coisa: seria ingenuidade pensar que o sentido se limita a um pequeno número de regiões cerebrais. Pelo contrário, a semântica recorre a uma vasta população de neurónios distribuídos em todas as regiões do córtex (p.156).

Aprender a ler

        No 5º capítulo, intitulado «Aprender a ler», o autor mostra como a aprendizagem da leitura modifica o cérebro da criança; descreve as fases desta aprendizagem e propõe pistas para otimizar o ensino da leitura.
       Também nesse capítulo demonstra a ineficácia do método global:
       Em resumo, atualmente não há qualquer dúvida: o contorno global das palavras não apresenta praticamente nenhum papel na leitura. O reconhecimento visual das palavras não assenta numa apreensão global do seu contorno, mas na sua decomposição em elementos simples, as letras e os grafemas. A região cortical da forma visual das palavras trata todas as letras da palavra em paralelo, o que, historicamente, é responsável pela impressão da leitura global. Mas a espontaneidade da leitura não é mais do que uma ilusão, suscitada pela extrema automatização das suas etapas, que se desenvolvem fora da nossa consciência (p. 297).
       Para terminar esta breve análise, sublinhamos ainda a leitura do capítulo 6º, no qual o autor fala de dislexia:
        Na maioria dos casos, a dislexia está ligada a um defeito de manipulação mental dos fonemas. O cérebro das crianças disléxicas apresenta várias anomalias características: (…).
Estas anomalias implicam que a dislexia seja incurável? De forma alguma. (…)(p.309)

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