Apesar da informação relativa ao funcionamento do cérebro durante o ato da leitura, apresentada no jornal Público, ter sido divulgada recentemente, estas descobertas foram já analisadas através de um Projeto Europeu “Signes et Sens”.
              Este projeto teve como tema  principal a leitura compreensiva e foi realizado pela Escola Secundária de  Afonso de Albuquerque da Guarda, em colaboração com vários parceiros europeus  (Bélgica, Roménia, Polónia, França e Turquia).
              O objetivo principal deste  projeto consistia na construção de um módulo de formação inicial e contínua,  para ajudar os professores a melhorarem o seu conhecimento do ato léxico, de  forma a identificarem os verdadeiros obstáculos na compreensão da leitura e,  desenvolverem práticas pedagógicas adaptadas para ultrapassar estes  obstáculos.
Para uma informação mais detalhada sobre o projeto, consulte: http://signesetsens.eu/pt/connaissance_acte_lexique.html
A Ciência da Leitura
      “Atrás de cada leitor esconde-se uma mecânica  neuronal admirável, tanto na precisão como na eficácia, da qual  começamos a compreender a organização. Nos últimos anos nasceu uma  autêntica ciência da leitura” (p.21).
            Neste livro  apaixonante e de uma considerável clareza, o autor tenta partilhar esta ciência  da leitura, assim como os avanços experimentais que a sustentam. A sua esperança  é ver aparecer uma verdadeira neurociência da educação, que permitirá optimizar  as estratégias de ensino, pondo definitivamente de lado, por exemplo, certos  métodos de leitura como o método global, do qual demonstra a sua ineficácia por  ser inadaptado à organização cerebral da criança.
   Dois modelos opõem-se para « explicar » o cérebro : 
- Modelo da plasticidade generalizada e do relativismo cultural (modelo antigo)
- Modelo da reciclagem neuronal (modelo mais recente e defendido pelo autor)
      O antigo modelo - Modelo da plasticidade generalizada e do relativismo cultural - desenvolve  as seguintes ideias: 
•O cérebro é um  órgão totalmente flexível e maleável, portanto, não constrange em nada a  extensão das actividades humanas (p.26).
•O cérebro humano  é, de alguma maneira, uma tábua rasa na qual são impressos os dados do meio  ambiente natural e cultural. 
       Não há, portanto, natureza humana biológica, mas uma  construção progressiva desta, por imersão numa dada cultura. 
•Só a capacidade  de aprender seria a característica da nossa natureza humana(p.26-27).
             Este modelo  foi recusado devido aos dados recentes da ressonância magnéticacerebral e da neuropsicologia.Veremos até que ponto é falsa a imagem de um  cérebro virgem, infinitamente maleável, e que se contentaria em absorver os  dados do seu meio ambiente cultural (p.27). 
       O autor desenvolve um outro modelo, o da reciclagem  neuronal. O nosso cérebro, segundo ele, é evidentemente capaz de aprender e  faz prova de plasticidade e de uma capacidade de adaptação ao meio ambiente, mas  a sua arquitetura está estreitamente enquadrada por fortes constrangimentos  genéticos (p.27). Esta aprendizagem é por isso limitada. Por exemplo,  em todos os indivíduos, em todas as culturas do mundo, a mesma região cerebral,  com diferença de alguns milímetros, intervém para descodificar as palavras  escritas. Quer se leia em francês ou em chinês, a aprendizagem da leitura  passa sempre por um circuito idêntico (p. 27).
              Este modelo  assenta na grande ideia que os circuitos corticais, herdados do nosso passado  evolutivo, se reconvertem ou melhor ou pior à leitura: a aprendizagem da  leitura impõe profundas modificações nos circuitos do cérebro (p. 22-23). É um órgão fortemente estruturado que faz do velho, novo. Para aprender novas  competências, reciclamos os nossos antigos circuitos cerebrais de primatas- na medida em que estes toleram um mínimo de mudança (p.28).
             O paradoxo da leitura sublinha o facto indubitável  de que os genes não evoluiram para nos permitir aprender a ler. Só se verifica  uma única solução. Se o cérebro não teve tempo de evoluir sob os  constrangimentos da escrita, então foi a escrita que evoluiu, para poder tomar  em conta os constrangimentos do nosso cérebro (p.29). E um pouco mais  adiante, o autor vê o vestígio de um incessante «bricolage» evolutivo que  adapta, sem descanso, os objectos da escrita aos constrangimentos do nosso  cérebro.
Como lemos?
Vamos  descobrir, de forma breve, o processo de leitura no seu aspeto  neuropsicológico.
Tudo  começa na retina, onde vêm projetar-se os fotões, reenviados pela página (p.36). A retina é a membrana que cobre todo o  fundo do globo ocular( é composta por várias camadas de células sobrepostas e  que têm funções diferentes). Esta  recebe as imagens captadas  pelo olho, transforma-as em sinais ou impulsos elétricos e transmite-os ao  cérebro, por meio do nervo ótico. 
             Ela não é homogénea, no sentido em  que só a zona central da retina,  chamada fóvea, é rica em células fotorecetivas de muito alta resolução,:os  cones. Esta zona, que ocupa aproximadamente 15 graus do campo visual, é a única  zona da retina realmente útil à leitura. Só ela capta as letrascom os detalhes suficientes para as poder  reconhecer (p.36). 
             A estreiteza das fóveas obriga-nos a mexer constantemente os olhos ao longo  da leitura. Não percorremos o texto de  forma contínua, os nossos olhos deslocam-se por etapas. Isto é, devido ao facto  de, no seio da fóvea, a informação visual não estar representada em todo o  lado com a mesma precisão. (…) A precisão é máxima ao centro e diminui na  periferia (p.37).
              Conseguimos  identificar 10 ou 12 letras por etapas : 3 ou 4 à esquerda do centro do olhar e  7 ou 8 à direita.É o que se chama,  habitualmente, de campo da perceção visual das letras. Esta  assimetria provém da direção da leitura.  No leitor de árabe ou de hebreu, quando o  olhar percorre a linha da direita para a esquerda, a assimetria do campo visual  inverte-se (p.41).
       O nosso olho impõe, portanto, à leitura enormes constrangimentos e … inamovíveis. Podemos demonstrar que são as sacadas oculares que limitam a  velocidade de leitura (p.42).
              Ao entrar na retina, a palavra  desfaz-se em mil fragmentos: cada porção  de imagem da página é reconhecida por um fotorecetor distinto. Toda a  dificuldade consiste depois em juntar esses fragmentos a fim de descodificar as  letras;trata-se da ordem pela qual são  apresentadas, napalavra em  questão(p.35). 
Onde se passatudo isto ?
              Num determinado lugar do  cérebro, no sistema de  reconhecimento visual das palavras: em todos os indivíduos,  em todas as culturas do mundo, a mesma região cerebral, com diferença de alguns  milímetros, intervém para descodificar as palavras escritas. Seja em francês ou  em chinês, a aprendizagem da leitura passa sempre por um circuito idêntico  (p. 27).
       O nosso sistema de  reconhecimento visual das palavras identifica o que não varia, apesar das formas  muito variadas que podem ter as palavras (tamanho, tipo de letra,  maiúsculas/minúsculas, negrito ou não, sublinhadas ou não, …): é o que chamamos  dereconhecimento invariável das palavras. 
       Aprende-se, assim, a descurar todas  as variações não pertinentes para a leitura e, em contrapartida, a  identificar e a ampliar as diferenças pertinentes, mesmo as mais  pequenas.
       Exemplo: A diferença entre "dois" e "dais", entre  "frou" e "tour".
Como tudo acontece?
              O nosso sistema visual decompõe  automaticamente as palavras em constituintes elementares. A natureza desses  constituintes continua um tema de pesquisa muito atual  (p.51). Assim decompostos, estes elementos vão poder ser utilizados pelo  cérebro para dar o som e o sentido. 
       Existem duas vias para a leitura : 
                  - a via fonológica ou via dos sons (= oralização ou leitura  silenciosa : não se trata nem de articular, nem de mexer os lábios, mas de  transformar as letras emsons, de aceder  àpronúncia das palavras). Também  chamada conversão grafema-fonema.
                  - a via lexical, ou via directa, que dá acesso direto ao  sentido.
       As opiniões são muito  controversas entre os investigadores:
      - para uns há uma  passagem obrigatória pela via fonológica antes de se aceder ao  sentido;
       - para outros, a passagem  pela via fonológica é uma caracteristica do leitor principiante e não do leitor  hábil.
             Posição do autor:Atualmente, existe um consenso : no  adulto, as duas vias da leitura existem e são ativadas  simultaneamente.(…)funcionamem paralelo, uma  sustentando a outra (p.53). 
            A via fonológica é a única possível para ler as  palavras novas ou raras na ortografia regular,os neologismos, as pseudopalavras … 
       O processo é o seguinte:  Descodificação das letras - procura de uma possível pronúncia - procura do  sentido.
      Via lexical é utilizada para as palavras  frequentes e indispensável, inicialmente, para as palavras irregulares  (numerosas em francês e mais ainda em inglês). 
       O processo é o seguinte:  Descodificação das letras - procura de sentido - tentativa de uma  pronúncia.
       Existe aqui uma diferença  clara, por exemplo, da língua italiana, onde não há praticamente palavras irregulares – cada letra  corresponde a um som e, portanto, os resultados de leitura das crianças são  nitidamente melhores que nos francófonos, não se verificandoquase nenhum disléxico!).
Nenhuma destas duas vias, por si só,é suficiente para ler todas as palavras  (p.70).
Quando lemos em voz alta, as duasvias conspiram e colaboram uma com a outra (p.70). 
A maioria dos modelos psicológicos contemporâneos  concorda que a leitura hábil e fluente resulta de uma estreita coordenação das  duas vias de leitura (p. 71). Portanto,  seria mesmo mais sensato  falar de vias múltiplas de  leitura. 
        Nota a propósito da via lexical : 
Assenta no armazenamento de dezenas de milhares de palavras num « léxico mental » ou talvez em vários léxicos: ortografia, fonologia, gramática e semântica. Todos estes léxicos agem em paralelo e de forma alguma por séries à grande eficácia e rapidez! (ver página 74 e seguintes a metáfora).
Assenta no armazenamento de dezenas de milhares de palavras num « léxico mental » ou talvez em vários léxicos: ortografia, fonologia, gramática e semântica. Todos estes léxicos agem em paralelo e de forma alguma por séries à grande eficácia e rapidez! (ver página 74 e seguintes a metáfora).
       Sem a acção do nosso léxico mental, a palavra  escrita tornar-se-ia numa «letra morta». A identificação das letras e das  palavras é um processo ativo de descodificação, no qual o cérebro acrescenta a  informação ao sinal visual (p.80).
  O reconhecimento de uma palavra exige que  múltiplos sistemas cerebrais se conciliem numa interpretação unívoca da entrada  visual. O tempo que demoramos a ler uma palavra depende portanto mais das suas  propriedades intrínsecas que dos conflitos ou das coligações que induzem no seio  da nossa arquitetura cerebral (p. 82).
       O nosso  léxico é uma arena onde a competição é difícil e onde a vantagem pertence aos «habituados », ou seja, às palavras mais frequentes (p.  82).
Em resumo, no cérebro:
Cada lobo é especializado numa ou várias  funções sensoriais.
As informações (palavras,  rostos, objetos, …) percebidas, pelos olhos, ativam as áreas visuais do lobo  occipital de cada hemisfério.
Estas regiões efetuam uma primeira  análise da imagem, provavelmente para dela extrair as formas elementares  (traços, curvas, superfícies,…). Neste estádio do tratamento da informação, o  cérebro ainda não sabe a que obedece (p. 115). Depois (50 milésimos de  segundos mais tarde), a informação começa a ser selecionada e as palavras  suscitam uma ativação da área do reconhecimento visual das palavras de que  acabámos de falar (no hemisfério esquerdo sobretudo, na região occipito-temporal  central). Tudo isto acontece automaticamente, em menos de um  quinto de segundo! 
         E depois do  reconhecimento visual, por onde caminha a leitura? Como acedemos ao sentido e à sonoridade das palavras? 
        A região  occipito-temporal, de que já falámos anteriormente, distribui então a informação a numerosas regiões corticaisem dois circuitos  principais : um converte-os em sons, o outro dá-lhe sentido. Estas  regiões já não são específicas para a leitura. 
E estas duas vias da leitura (que dão  acesso ao sentido e à sonoridade das palavras) ativam áreas cerebrais  distintas. 
Conversão das letras em sons
 
               O lobo temporal esquerdo  está amplamente implicado, nomeadamente numa região superior deste lobo temporal  chamada planum temporal, porque permite o encontro das informações  visuais e auditivas, o planum temporal tem verdadeiramente um papel de  encruzilhada essencial à aprendizagem da leitura (p.  152).
               Via de  acesso ao sentido: Várias regiões são  ativadas, no entanto, nenhuma é específica para as palavras escritas. A complexidade destes  mecanismos é impossível de resumir em poucas linhas! 
Encontramo-nos ainda, e só, no  balbuciamento da neurologia do sentido. (…) no domínio do sentido,a humildade é de bom tom porque ninguém,  presentemente, pode pretender ter um modelo neurológico preciso/exato deste  misterioso raio de compreensão que faz com que a atividade de uma rede de  neurónios, num determinado instante, «faça sentido» (p.155).
Sabemos ao menos uma coisa: seria  ingenuidade pensar que o sentido se limita a um pequeno número de regiões  cerebrais. Pelo contrário, a semântica recorre a uma vasta população de  neurónios distribuídos em todas as regiões do córtex (p.156).
Aprender a  ler
              No 5º capítulo,  intitulado «Aprender a ler», o autor mostra como a aprendizagem da leitura  modifica o cérebro da criança; descreve as fases desta aprendizagem e propõe  pistas para otimizar o ensino da leitura.
             Também nesse capítulo  demonstra a ineficácia do método global:
             Em resumo, atualmente não há qualquer dúvida: o  contorno global das palavras não apresenta praticamente nenhum papel na leitura.  O reconhecimento visual das palavras não assenta numa apreensão global do seu  contorno, mas na sua decomposição em elementos simples, as letras e os grafemas.  A região cortical da forma visual das palavras trata todas as letras da palavra  em paralelo, o que, historicamente, é responsável pela impressão da leitura  global. Mas a espontaneidade da leitura não é mais do que uma ilusão, suscitada  pela extrema automatização das suas etapas, que se desenvolvem fora da nossa  consciência (p. 297).
             Para terminar esta breve  análise, sublinhamos ainda a leitura do capítulo 6º, no qual o autor fala de dislexia:
        Na maioria dos casos, a  dislexia está ligada a um defeito de manipulação mental dos fonemas. O cérebro  das crianças disléxicas apresenta várias anomalias características: (…). 
Estas anomalias implicam que a dislexia seja  incurável? De forma alguma. (…)(p.309)





 
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